Viagem literária à Casa Museu José Saramago

Revisitar Lanzarote!

Já visitou alguma vez um lugar pelo simples facto de estar mencionado num dos seus livros favoritos? Já viajou alguma vez para destinos porque os seus escritores ou artistas favoritos lá viveram, ou até mesmo para destinos habitados pelas suas personagens de ficção favoritas?

Se a sua resposta for "sim", então acaba de se qualificar como viajante literário. Mas o que é que os entusiastas de viagens literárias podem encontrar na paisagem agreste e ventosa de Lanzarote? Continue a ler enquanto recuo até 2018 e revisito as razões que me levaram a uma viagem de 5 dias por Lanzarote.

Vista de crateras vulcânicas e estrada com carro no Parque Nacional de Timanfaya, Lanzarote, Ilhas Canárias

Estrada que circunda as crateras vulcânicas, no coração do parque de Timanfaya, Lanzarote
 

Passei a maior parte da vida a viajar através dos livros. Mas nem por isso sou menos viajante. Navegar pelas páginas de um livro, mergulhar em busca das pérolas para depois ligá-las com fios de realismo mágico, também deveria contar como viajar, certo?

Então, porquê Lanzarote? O início desta viagem remonta a 2007, ano em que tive de ler a Jangada de Pedra, um livro de José Saramago (1922-2010), para um trabalho no âmbito da disciplina de Teoria da Literatura. O enredo girava em torno da Península Ibérica e de um evento inusitado que a separou do resto da Europa: o surgimento de uma fenda gigante nos Pirinéus. A península transformou-se, assim, numa ilha, que se assemelhava a uma grande jangada de pedra à deriva pelo Atlântico.

 Nada de cativante até agora, convenhamos. Mas tudo o que peço é que suspendam qualquer réstia de descrença que possam ter (willing suspension of desbelief), por tempo suficiente, para que possam notar e admirar, tanto como eu, a profunda compreensão da natureza humana que Saramago possuía.

Dentro do perímetro de uma terra finita (uma ilha), cinco personagens de Portugal e Espanha, acompanhados por um cão sagaz, viajam num Citroën 2CV, num percurso labiríntico que acabaria por ser uma viagem de auto-conhecimento.

Da mesma forma, dei por mim a conduzir por paisagens marcianas, não estando minimamente preparada para a sensação tão terrena trazida pelos inescapáveis ventos de Lanzarote. Acreditem nas minhas palavras quando digo que esta ilha fustigada pelos ventos tem o poder de conduzir-nos para direções inesperadas.

Nada a temer, se tivermos os pés bem assentes quando a direção do vento mudar ("when the winds of change shift"), como naquela música do Bob Dylan. Mas continuemos com o que não é menos essencial: a bagagem do viajante!

A bagagem de um viajante para Lanzarote 

Não naveguei de Portugal para Lanzarote em barco, como a introdução poderia ter sugerido. Também não foram as praias fabulosas de Lanzarote que me motivaram. Como já devem ter deduzido, a base de tudo isto está num livro!

Ao planear as nossas férias em Lanzarote, eu e o meu companheiro achávamos que tínhamos coberto todos os pormenores e achávamos que sabíamos exatamente o que esperar da ilha. Depois de tanta expetativa e preparação, a mala de cabine (56x45x25 cm) que levei para a viagem de avião para Lanzarote só continha:

  • Essenciais de praia: tudo para desfrutar do sol na praia e na piscina do hotel, embora tenhamos passado 95% do tempo em modo roadtrip, a passear e a admirar as vistas ou a caminhar pelas paisagens vulcânicas.
  • Um livro: A Jangada de Pedra, como já sabem, ambientado na Península Ibérica, escrito por José Saramago e autografado pelo mesmo em outubro de 2009. Sendo filha de pai português e de mãe espanhola, visitar o que mais se aproximava de uma jangada de pedra à deriva no Atlântico foi, tal e qual, o sonho de uma ibérica tornado realidade.
  • Um rascunho da roadtrip: não planeamos a nossa roadtrip com muito detalhe e apenas destacámos as visitas às Casas Museu de Saramago e de César Manrique, confiando plenamente que, entre o perímetro bem delimitado da ilha, não teríamos dificuldade em descobrir tudo o resto.

Foi assim que aterrámos no Aeroporto de Arrecife, meros passageiros, com 2 bagagens leves. Depois, perto do aeroporto, fomos buscar o carro alugado, compacto, de 2 portas, ainda alheios à verdadeira personalidade de Lanzarote, ao som de uma banda islandesa de pós-metal chamada Sólstafir.

A nossa primeira paragem foi no Hotel Lanzarote Village, em Puerto del Carmen, onde ficamos hospedados. Além de oferecer todas as comodidades, serviços e fácil acesso à praia, o hotel estava a apenas a 30 minutos de carro de todos os outros locais turísticos.

Puerto del Carmen é também conhecido pela sua vida noturna vibrante, com muitas discotecas e bares. Mas a verdade é que não tirámos partido desses "extras". Passámos os serões a jantar num restaurante tranquilo à beira-mar, a passear pelo calçadão de Puerto del Carmen, a ver o pôr do sol e as palmeiras desenhadas no horizonte alaranjado, ou a ver os aviões a aterrar, a passar rentes às nossas cabeças na praia de Guacimeta.

Para a maior parte das pessoas que decide visitar Lanzarote, este roteiro pode parecer algo enfadonhos. Mas tudo vai da personalidade de cada um, a começar pelo nosso conceito de diversão que determinará o que nos faz sentir confortáveis e até os aspetos a ter em conta ao planear uma viagem para Lanzarote. 

E eis onde reside o requinte da "Ilha da Eterna primavera": na sua capacidade de se adaptar às expetativas de qualquer viajante, com muitas possibilidades, mesmo para os que preferem viajar no outono e no inverno

5 conselhos úteis para planear a sua viagem a Lanzarote

Hoje, se me fosse dada a oportunidade de voltar a Lanzarote, sei exatamente o que faria de diferente, o que acrescentaria ao meu roteiro de viagem e o que levaria desta vez. Aqui estão as minhas 5 dicas sobre o que levar na mala para a sua viagem a Lanzarote para que também possa aproveitar ao máximo:

  1. Calçado apropriado: além da roupa de praia, lembre-se de levar calçado adequado para caminhadas, para que possa andar confortável pelos terrenos acidentados e vulcânicos do Parque Timanfaya ou até para poder escalar a Caldera Blanca, a cratera mais larga dos muitos vulcões da ilha.
  2. Casaco com capuz: mesmo que viaje para Lanzarote durante o verão, pode sentir frio nalgumas partes da ilha por causa do vento forte. Daí que levar um casaco com capuz possa ser a escolha perfeita para proteger os ouvidos a cara e os ouvidos do vento.
  3. Planear rotas de trekking: há muito para explorar a pé e, acredite, não vai querer deixar de explorar um único sítio ou cratera que seja só porque não conhecia todas as opções com antecedência.
  4. Alugar um carro 4x4: não quero com comparar Lanzarote à Islândia. Ainda assim, arrependemo-nos de não ter alugado um veículo com tração às 4 rodas ou, pelo menos, um veículo mais robusto, para maior conforto, estabilidade e segurança nas estradas secundárias em gravilha, ocasionalmente esburacadas.
  5. Verificar os guias de viagem da Ferryhopper: em 2018, a Ferryhopper tinha acabado de chegar ao setor de reservas de viagens de ferry, e não a conhecíamos, mas tenho certeza de que ter acesso aos seus guias teria feito toda a diferença.

No entanto, não se fique por esta informação. Para obter uma lista completa das maravilhas históricas, culturais e naturais que pode encontrar em Lanzarote, consulte o guia de viagem sobre Lanzarote da Ferryhopper.

Dito isto, podem estar certos de que não importa se não são muito entusiastas do trekking ou de hiking. Para viajar para Lanzarote, basta-vos o espírito aventureiro do viajante literário.

De avião ou de ferry, é preciso coragem e paixão para sair da nossa zona de conforto e levar um livro ao lugar onde o seu escritor escolheu viver, o que me leva ao ponto alto desta viagem: a visita à Casa Museu de Saramago!

Dica extra: se já estiverem em Lanzarote, não precisam de vento para içar velas e navegar para outras paragens. Podem apanhar um ferry para uma viagem rápida até à ilha vizinha de La Graciosa. Tudo o que têm de fazer é de descarregar a Aplicação da Ferryhopper e reservar os vossos bilhetes de ferry de forma fácil e rápida!

A tirar uma fotografia da ilha La Graciosa a partir do Mirador del Río em Lanzarote, Ilhas Canárias

No Mirador del Río, com uma vista deslumbrante para a ilha La Graciosa.

Visita à Casa Museu Saramago

 No caso de ter chegado a este blogue como fã da obra literária de José Saramago, saberá que há três casas-museu de visita obrigatória, caso ainda não o tenho feito: 

  • A Casa, em Tías, em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, Espanha, onde Saramago viveu as últimas décadas da sua vida
  • A Casa dos Bicos, sede da Fundação José Saramago, em Lisboa, Portugal
  • Fundação da Delegação de Azinhaga de José Saramago, que alberga elementos da casa de infância de Saramago, na Golegã, Portugal (a 70 minutos de Lisboa de carro)

No entanto, este é o momento e o lugar de revisitar "A Casa", em Tías, uma pequena aldeia de Lanzarote, onde o único Prémio Nobel português viveu durante 20 anos com a sua mulher, Pilar de Río, jornalista, romancista e tradutora espanhola.

Então, aqui vamos nós! De Puerto del Carmen a Tías, fizemos uma viagem de 7 minutos, a imitar e a rir-nos da personalidade tão caricata, e por vezes mordaz, de Saramago nas várias entrevistas que fomos vendo dele. Havia também a opção de uma viagem de autocarro de 12 minutos, mas não teria sido tão divertida.

Quando chegámos a Tías, a primeira coisa que saltou à vista é uma escultura de uma árvore em metal enferrujado no meio de uma rotunda. Quando virem esta árvore, saberão que estão perto do cosmos Saramago. Trata-se da escultura de uma oliveira, que tem forte simbolismo na cultura mediterrânica.

Escultura de oliveira numa rotunda perto da Casa Museu de Saramago em Tías, Lanzarote

Escultura de oliveira na rotunda junto à Casa Museu de Saramago

Depois da rotunda, virámos à esquerda, e lá estava ela, “A Casa”. Depois de atravessar a porta de entrada, os visitantes são recebidos por uma oliveira verdadeira e por um elefante. Foi por esta altura que a minha visão começou a ficar turva, mas as minhas memórias bastante nítidas. Ou seja, com os olhos sempre prestes a transbordar de lágrimas de emoção, ou não estivesse eu tão arrebatada por este lugar.

Esta paragem incluiu uma visita guiada à casa que Saramago havia partilhado com a sua mulher. A decoração, despretensiosa, era nitidamente de inspiração mediterrânica, mas contava também com um toque cosmopolita, dada a quantidade de livros, quadros, fotografias e outros artefactos simbólicos provenientes dos quatro cantos do mundo.

Sei que eram muitas referências para identificar e interligar, o que claramente refletia e traduzia o meu conceito de diversão. E ainda bem que havia uma guia turística a descrever a maior parte dos objetos. Quando ela terminava a sua explicação, podíamos utilizar os dispositivos áudio para ouvir mais pormenores, em diferentes línguas.

Como tradutora, não pude deixar de reparar nas vozes dos restantes visitantes do grupo, que falavam italiano, português do Brasil, espanhol de Espanha e da Argentina, grego (sei porque parecia espanhol, mas não era), alemão da Alemanha ou da Áustria (não conseguia distinguir, mas sabia que não era alemão da Suiça) e uma língua eslava (que não consegui distinguir).

Era como estar num passeio pela Torre de Babel, que incluiu também uma visita à biblioteca de Saramago, que contém uma vasta coleção de livros, juntamente com uma seleção de objetos de arte, quadros e revistas para explorar. Adjacente ao edifício, encontrámos também uma loja onde vos recomendo que percam a cabeça e comprem os vossos souvenirs.   

Sem querer revelar demasiados detalhes desta visita, quero apenas acrescentar que terminou com um belo café curto, à moda portuguesa, que tomei sentada na varanda ao lado da cozinha, mesmo por cima do jardim onde Saramago costumava sentar-se e brincar com os seus cães.

A mesa de trabalho de José Saramago, na sua Casa Museu em Tías, Lanzarote

A secretária de Saramago, onde toda a magia aconteceu

Com o livro na minha bolsa, passámos aqui uma manhã inteira. Senti-me em casa e pude finalmente compreender porque é que Lanzarote, qual jangada de pedra no Atlântico, acabou por ser a casa de Saramago.

À saída, dediquei um minuto a escrever uma nota no livro de visitas: "O sonho de uma ibérica tornado realidade". Depois disto, não pude deixar de pensar: "É isto? Será esta a minha última vez aqui?”.

Bem, continuem a ler se quiserem descobrir mais sobre como é que esta viagem realmente começou e como terminaría. 

O dia em que conheci José Saramago 

Os ensinamentos de Saramago, através da sua abordagem humanista da vida, das observações da condição humana e do profundo respeito que ele tinha pela natureza e pelos animais, ajudaram-me a ultrapassar muitos desafios na vida. Também induziram mudanças de perspetiva e transições para novos capítulos na minha vida.

Um desses capítulos remonta a 2009 e ao lançamento do último romance de Saramago, Caim. Paralelamente a este evento de lançamento do livro, a editora onde trabalhava como coordenadora editorial estava a organizar uma homenagem a Saramago.

Fui responsável pela curadoria dos guiões do teatro de rua, com falas das personagens de Saramago. Ora, poderia ter havido maior coincidência do que esta? Nunca, no meio de todo o caos de possibilidades do mar de átomos que nos rodeia, poderia eu ter imaginado que no meu primeiro emprego a sério estaria a trabalhar com aquela que era a minha grande paixão: a literatura saramaguiana!

Depois de todo o tumulto que foi o lançamento do livro e do evento de homenagem (é um livro controverso, mas isso é uma história para outro dia), eu não queria incomodar Saramago à hora do jantar, no hotel, mas eis que o editor-chefe abriu caminho, ao dizer: 

“José! Aqui está a Noélia, aquela que um dia chegou ao escritório com um saco cheio de livros seus...“ 

Foi assim que estive perto dele, em Penafiel, com 3 livros na bolsa, desta vez. E apesar de toda a azáfama daquele dia, Saramago foi gentil o suficiente para autografar os 3 livros, incluindo a Jangada de Pedra.

As únicas palavras que consegui murmurar foram: "Este é o meu livro preferido", e "E também sou ibérica". Sabia que essas palavras eram mais do que suficientes. Ele também sabia, claro, o que significavam, e talvez por isso me tenha estendido a mão e dito: “Minha querida!”.

Um minuto para revisitar este momento, por favor.   

Quando os passageiros se tornam viajantes

 Já é tempo de vos contar como terminou a minha viagem a Lanzarote: não terminou. E eis uma citação de um livro de viagens que Saramago escreveu nos anos 80 que abre perfeitamente o caminho para qualquer outra história de iniciação para viajantes:  

“A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o visitante sentou na areia da praia e disse: “Não há mais o que ver”, saiba que não era assim. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra.”

Em Viagem a Portugal, de José Saramago 

Cartaz de Saramago a dar as boas-vindas aos visitantes na entrada da Casa Museu de Saramago, em Tías, Lanzarote

Poster de Saramago a dar as boas-vindas aos visitantes de “A Casa”

Seguindo as palavras de Saramago, preciso de revisitar Lanzarote e rebobinar os passos já dados. Ventos como os que se sentem em Lanzarote trazem algum caos aos viajantes que por aqui param, mas esta nova experiência nada mais é que uma nova ordem à espera de ser decifrada ou traduzida.

É por isso que quis partilhar esta viagem literária, para poder continuar a inspirar-me a mim e aos outros. De vez em quando, pensem num livro, num autor, num enredo, numa personagem, numa obra de arte, ou mesmo numa figura mitológica pela qual sintam inspiração suficiente a ponto de visitar ou mesmo revisitar um determinado local.

Acabei de me lembrar do “Museu Casa Pérez Galdós”, na Gran Canaria, um romancista espanhol muitas vezes comparado a Tolstoi e Balzac, apenas atrás de Cervantes. Se voltar a Lanzarote, depois de revisitar a Casa-Museu de Saramago, estarei pronta para embarcar numa viagem de ferry de 6 horas para a Gran Canaria a partir de Lanzarote.

De facto, saltar de ilha em ilha pelas Canárias é uma opção real com a Ferryhopper. E suponhamos que a sua condição de viajante literário não tem mesmo cura. Então, está no sítio certo, porque tem sempre a possibilidade de procurar outros pontos de interesse literário e planear aventuras pelas ilhas do Mediterrâneo, do Mar Egeu e do Mar Jónico, só para mencionar alguns.

Já sente a brisa do espírito aventureiro? Agora, no final de vos relatar a minha história, estou curiosa por saber: que viagens literárias já fizeram ou planeiam fazer? Quais os livros que já transportaram nas vossas viagens de ferry?


Biografia da autora

Olá, viajantes! Eu sou a Noélia, a voz da Ferryhopper em português.😊 Nascida no sopé da Sierra Nevada, passei a primeira metade da minha vida entre o deserto de Granada, as encostas dos Alpes suiços e a serra da Cabreira.

Depois de anos a viajar por terra e ar, a saltar entre paisagens dramaticamente contrastantes, acabei por criar raízes numa cidade conhecida como a Roma Portuguesa, onde tive a oportunidade de começar a navegar ⛵através das páginas dos livros.

Hoje, como aspirante a navegante ⛴️, vivo em constante modo de tradução deste "mar de átomos" que nos rodeia, e talvez seja por isso que os meus destinos preferidos, sempre que possível, sejam as ilhas.😎🏝️